René Malgo
Quatro possíveis
razões e uma palavra-chave
Já se perdeu a conta da fragmentação do cristianismo em inúmeras
denominações, igrejas e seitas. Ao que parece, as cisões estão na ordem do dia.
Mesmo a Chamada da Meia-Noite não ficou isenta de múltiplas controvérsias e de
amargas discussões ao longo dos seus 60 anos de história (N. da R.: houve
algumas discussões e controvérsias na Europa, com a Chamada da Meia-Noite em
sua sede na Suíça) - e é provável que assim continue também no futuro. Qual seria
a razão disso?
Quero apontar aqui quatro razões ou respostas. A primeira é simples, mas
provavelmente é a mais difícil de suportar. A divisão dos cristãos baseia-se na
natureza humana. “O coração é mais enganoso que qualquer outra coisa”,
diz o profeta Jeremias, “e sua doença é incurável; quem é capaz de
compreendê-lo?” (Jr 17.9). Os crentes poderão argumentar que ganharam um
novo coração por meio de Jesus (Rm 6). É verdade! Todavia, ainda assim os
cristãos lutam com o pecado em seu velho corpo (Rm 7). Enquanto ainda
habitarmos este corpo atacado pelo pecado, será para todos nós impossível
enxergar tudo corretamente. “Agora, pois, vemos apenas um reflexo
obscuro, como em espelho; mas então veremos face a face” (1Co 13.12).
Somente quando ressuscitarmos ou formos transformados e virmos o nosso Senhor
face a face é que entenderemos tudo (cf. 1Jo 3.2).
Os cristãos são personalidades divergentes, têm aspectos fortes e fracos
diferentes, diversas preferências e pecados variados com que precisam lutar.
Sua formação, maturidade, capacidade espiritual, relacionamento com o Senhor,
seu intelecto, sua capacidade intelectual diferem... não admira que tantas
vezes discordemos! Os seres humanos são complexos, emotivos e inquiridores, e
os cristãos não são exceção. A conversão não nos transformou em robôs
padronizados. “Os propósitos do coração do homem são águas profundas,
mas quem tem discernimento os traz à tona” (Pv 20.5).
A Palavra de Deus é verdade objetiva, mas as pessoas a interpretam
subjetivamente. Tiago, líder da igreja primitiva em Jerusalém, diz a respeito
das questões doutrinárias:“Todos tropeçamos de muitas maneiras”
(Tg 3.2). Por isso os crentes não deveriam ter muita pressa em ser
mestres da Palavra, “pois vocês sabem que nós ... seremos julgados com
maior rigor” (Tg 3.1).
Tiago 3.2 é um “versículo régio” em relação à nossa questão. Se um
meio-irmão de Jesus e uma “coluna” da igreja primitiva
(Gl 1.9) diz que “todos [nós]” tropeçamos
frequentemente, incluindo assim a si mesmo nisso, quanto mais essa declaração
se aplicará a nós hoje, 2.000 anos depois e culturalmente a anos-luz de
distância dos apóstolos!
Hoje há uma variedade de premissas e sistemas teológicos concorrentes
influindo o modo como lemos a nossa Bíblia. Podemos não nos dar conta disso
conscientemente, mas por meio das igrejas que frequentamos, os institutos
bíblicos nos quais nos formamos ou a literatura cristã que lemos, cada um de
nós tem marcas teológicas diferentes. Entre os protestantes há, por exemplo,
teólogos da aliança, teólogos da substituição, dispensacionalistas,
ultradispensacionalistas, dispensacionalistas progressivos, batistas,
calvinistas, luteranos, menonitas, irmãos abertos, irmãos restritos,
universalistas, arminianos, amilenistas, pós-milenistas, pré-milenistas,
pré-tribulacionistas, mesotribulacionistas, pós-tribulacionistas,
presbiterianos, congregacionalistas, anglicanos, pentecostais, etc. etc. ... E
ainda que todos eles tenham boas razões para afirmar sua fidelidade exclusiva à
Bíblia, todos acabam determinados por diferentes sistemas interpretativos e
teologias sistemáticas. A cultura cristã na qual nos movemos inevitavelmente
tinge os óculos através dos quais lemos a Bíblia.
Não me entendam mal: todos temos óculos como esses, e isso é normal. A
arte está em obter as lentes certas. Paulo espera que interpretemos a Palavra
de Deus “segundo a sã doutrina” (Tt 1.9). A sã doutrina
apostólica terá de ser o nosso filtro. Quem afirma ler a Bíblia sem óculos e
sem filtro engana a si mesmo. Assim, por exemplo, é razoável que nenhum cristão
normal aplique à sua vida diária a exigência de apedrejar filhos rebeldes fora
da cidade, conforme exige a aliança do Sinai (Dt 21.18-21).
Temos de reconhecer que todos nós - mesmo os mais sábios e “piedosos”
entre os professores de Bíblia - somos criaturas falíveis. Nenhum de nós seria
superior a Tiago neste quesito. Somos pessoas que conseguem enganar até a si
mesmas. A Bíblia sabe disso há muito tempo (Jr 17.9). A esta altura, os
psicólogos seculares também já descobriram esse fato. Por natureza, tendemos a
registrar a realidade de uma forma que se encaixe em nosso esquema e que
corresponda à imagem subjetiva que temos do mundo. Por isso o diálogo de surdos
entre os cristãos é tão comum e não conseguimos progredir. Constantemente
corremos o risco de interpretar palavras e frases da Bíblia segundo as nossas
tendências pessoais.
Um exemplo: imagine alguém que em geral raciocine de forma muito
organizada e sistemática. Tudo em sua vida precisa ter uma estrutura definida e
uma clara explicação. É uma pessoa racional e lógica, que não suporta
obscuridades. Qual será sua tendência ao interpretar a Bíblia? É provável que
seja simpático a sistemas interpretativos que organizem a doutrina bíblica sem
lacunas e que a dividam em várias unidades fechadas e em épocas claramente
definidas. Para essa pessoa seria importante ter uma explicação exata de cada
detalhe bíblico, e ela cuidaria para que nenhuma incoerência penetrasse ali.
Mas temos então uma outra pessoa, o tal tipo artístico. Seu lema é: só
os tolos precisam de ordem; o gênio abarca o caos. E trata-se realmente de um
gênio. O que para outros parecem contradições, para ele é apenas o tempero que
dá sabor à vida. Ele sempre está em busca de um plano espiritual mais elevado.
Nunca se cansa de aprender. Para onde será que ele tenderá ao interpretar a
Bíblia? Provavelmente sentirá rejeição por sistemas interpretativos
sistematizados e afirmará que se trata de tentativas de enquadrar Deus. Mais
atraentes seriam para ele abordagens mais místicas e “holísticas” da Bíblia,
que mantenham uma visão do todo. Tais pessoas gostam de paradoxos e reservam
espaço para incertezas.
Ambos creem a mesma coisa. Neste exemplo não temos um bom e um mau.
Ambos amam Jesus Cristo, afirmam a trindade divina, valorizam a Palavra de Deus
e creem no Evangelho. Mesmo assim, porém, em certos aspectos as teologias que
ambos moldaram em torno do núcleo da sua fé podem ser totalmente diferentes.
De certo modo, todos buscamos um lar teológico no qual possamos nos
sentir bem. E por sermos personalidades diferentes, nossos lares teológicos
também podem ter aparências diferentes. Mas, como um professor de Bíblia
explicou certa vez, toda casa teológica tem também seus defuntos no porão. Por
nos equivocarmos, por sermos pecadores, por termos nossas preferências e
limitações, sempre haverá pontos em nossas convicções que outros não poderão
assumir e que - segure-se! - estão errados. E com isso chegamos ao segundo
ponto.
Nós cristãos vivemos tantas vezes desunidos porque nos baseamos neste
mundo e não na eternidade. Será que sempre temos consciência do que, afinal,
falamos e sobre o que discutimos? Em última análise, falamos de Deus, do
Onipotente, daquele que “mesmo os mais altos céus” não podem
conter (1Rs 8.27) e cujos pensamentos são tão mais altos que os nossos
como “os céus são mais altos do que a terra” (Is 55.9). É
verdade que este Deus se comunica conosco de forma compreensível e comprometida
por meio de Sua Palavra e se tornou acessível em Jesus Cristo. Ainda assim,
porém, Ele continua sendo o Eterno “que habita em luz inacessível”
(1Tm 6.16).
O que tem isso a ver com os defuntos no porão? Muito simples: com os
nossos sistemas e os nossos pensamentos humanos, jamais poderemos captar Deus
plenamente. Sempre haverá áreas na Palavra de Deus e na Teologia que não
poderemos explicar ou que não conseguiremos compreender. Estamos lidando com o
Onipotente e a inesgotável riqueza da sua incomensurável e múltipla sabedoria.
Lidamos com um plano de redenção que supera todo conhecimento, que mesmo “os
anjos anseiam observar” (1Pe 1.12).
Nós, os cristãos, muitas vezes discutimos e brigamos justamente em torno
daquilo que não conseguimos entender plenamente: a soberania e a natureza do
Deus triúno e Seu plano para o futuro e a eternidade. É plenamente normal que,
limitados como somos, esbarremos em nossas conjecturas sobre o Eterno em nossos
limites e cheguemos a resultados divergentes.
“Nosso Deus é fogo consumidor“ (Hb 12.29). Qualquer encontro
com Ele, o Infinito, abalará as criaturas finitas que somos e nos marcará de
diferentes maneiras de acordo com a nossa respectiva configuração. “Provem
e vejam como o Senhor é bom. Como é feliz o homem que nele se refugia!” (Sl 34.9).
Todos podem experimentar a bondade de Deus, mas por Ele ser em sua natureza tão
diferente, tão ilimitado, cada pessoa provará e enxergará essa bondade de modo
um pouco diferente.
Atenção: isto não é desculpa para a maior de todas as heresias, segundo
a qual de algum modo todas as religiões conduziriam a Deus. A Bíblia é clara e
inequívoca em dizer: “Não há salvação em nenhum outro, pois debaixo do
céu não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”
(At 4.12). Salvos serão apenas aqueles que creem tão-somente em Jesus
Cristo e O reconhecem como Senhor da sua vida (At 16.31), e ninguém mais.
Todavia, esses cristãos, por serem diferentes e limitados, tentarão explicar de
formas diferentes a inesgotável plenitude do seu Deus.
Nós cristãos
vivemos tantas vezes desunidos porque nos baseamos neste mundo e não na
eternidade.
Se todos os cristãos de todas as eras concordassem em todos os detalhes
a respeito do conteúdo da Bíblia, seria razoável dizer que teríamos em mãos um
livro muito superficial. Como, porém, o que ocorre é justamente o oposto e
porque se discute tão acaloradamente sobre a Bíblia porque sua Palavra atinge
tanto os corações, dividindo famílias, comunidades e até países, e porque
jamais encerraremos os debates sobre ela, sabemos e reconhecemos que Deus é
Deus e que Sua Palavra é Sua Palavra.
É claro que um muçulmano poderia dizer o mesmo sobre o Corão,
polarizador como ele é. Contudo, isto nos leva ao terceiro ponto. Os demônios
calam fundo. É verdade que isto não é bem politicamente correto, mas do ponto
de vista dos apóstolos, as falsas religiões têm inspiração demoníaca
(1Tm 4.1), e este é um ponto que nós, como cristãos, frequentemente
esquecemos. Estamos interagindo com a realidade de principados, poderes, dominadores
deste mundo tenebroso e de poderes espirituais da malignidade no mundo
invisível (Ef 6.12).
Um professor de Bíblia apontou certa vez para o fato de que os falsos
deuses com que Israel se prostituía no Antigo Testamento eram reais. As
estátuas de pedra e madeira destinadas a servir de local de veneração desses
deuses não tinham vida nem conteúdo, mas os próprios deuses das nações eram
reais porque por trás deles havia efetivos poderes demoníacos. Por sinal, não
faria sentido dizer que Deus é maior que aqueles deuses se estes nem sequer
existissem (cf. Dt 4.7; 10.17; Is 36.20). Seria mais ou menos como se
o Senhor proclamasse: “Sou maior que o papai-noel!”
Os deuses eram e são reais. São demônios que inspiram falsas doutrinas e
religiões e que combatem o Deus vivo e unicamente verdadeiro, bem como Sua
Igreja. Defrontamo-nos com as “ciladas do diabo” (Ef 6.11), um
adversário capaz de disfarçar-se de anjo “da luz” (2Co 11.14) e
que nos ronda “como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar”
(1Pe 5.8).
Será que realmente não cremos que esse inimigo real, com milênios de
experiência e uma rede de demônios “semelhantes a deuses”, já não terá
conseguido fazer estrago na Igreja do Deus vivo? Sempre que não estivermos
vigilantes e não portarmos toda a armadura de Deus, expomo-nos ao ataque de
seres muito mais poderosos do que nós, que terão todo o prazer em aproveitar-se
dessa vulnerabilidade.
Infelizmente, muitas vezes nossa desunião também resulta de nos
deixarmos atropelar por seduções demoníacas. Assim, por exemplo, presumimos o
pior sobre o nosso próximo, não nos orientamos pelas diretrizes do Evangelho e
do amor, somos vítimas de boatos e difamações e pisamos em armadilhas
magistralmente projetadas sob medida para nós, cedemos a bajulações, aceitamos
conselhos falsos ou agimos movidos pela ira. É frequente os conflitos entre
cristãos serem regidos por ódio, fúria e amargura - e tais sentimentos
certamente não provêm de Deus, em que existe apenas luz e nenhuma sombra.
Preciso julgar a mim mesmo: esquecemos com excessiva rapidez que somos
criaturas facilmente influenciáveis, frágeis e dependentes, expostas a um
combate cósmico que não poderemos vencer com nossas próprias forças. E isto,
por sua vez, nos conduz ao quarto motivo da nossa divisão.
À medida que o fim se aproxima, esse combate espiritual torna-se cada
vez mais violento e perigoso. A prosperidade que gozamos no Ocidente e a
sedução que nos cerca por todos os lados podem turvar nossa visão para esta
realidade. Todavia, o Novo Testamento esclarece que os tempos entre a cruz e a
volta de Jesus são tempos finais “maus”, que vão piorando continuamente (cf.
Hb 1.2; Ef 5.16; Mt 24-25). A respeito da Igreja, Paulo enfatiza
em uma de suas cartas que “nos últimos dias sobrevirão tempos
terríveis” (2Tm 3.1), nos quais “os homens serão egoístas,
avarentos, presunçosos, arrogantes, blasfemos, desobedientes aos pais,
ingratos, ímpios, sem amor pela família, irreconciliáveis, caluniadores, sem
domínio próprio, cruéis, inimigos do bem, traidores, precipitados, soberbos,
mais amantes dos prazeres do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade,
mas negando o seu poder” (2Tm 3.2-5).
Note que, entre outras coisas, a falta de amor, a arrogância e a
indisposição para reconciliação aumentarão nos últimos dias. Não sei até que
ponto já penetramos nos tempos do fim, mas é inegável que hoje estamos mais
perto do fim do que há 2.000 anos, e o aumento das características citadas
acima em nossos dias deveria ao menos dar o que pensar. Não devemos
espantar-nos pelo fato de hoje o cristianismo parecer mais separado do que no
início. Os sinais dos últimos dias se infiltram na Igreja e, quanto mais o
tempo avança, tanto pior será. É a profecia bíblica que o afirma.
Por isso chega a beirar o milagre que os cristãos mantenham algum tipo de
unidade até hoje! A pergunta formulada no título está errada. Considerando as
limitações da natureza humana, a infinita diferença da natureza de Deus, o
poder demoníaco no mundo invisível e o anúncio bíblico dos tempos finais, seria
mais razoável perguntar: por que os cristãos muitas vezes estão unidos? A
resposta é: graças ao Espírito Santo.
O Espírito Santo é o Deus subestimado. Alguns Lhe atribuem suas próprias
ideias absurdas, outros não esperam nada Dele. No entanto, nosso Deus não é
biúno, mas triúno - e esta é a garantia da nossa segurança. Por meio do
Espírito Santo, a plenitude de Deus habita em nós (Ef 1.13-14,17;
3.14-19). Ele é o Consolador e Apoio que acalma e sela o nosso coração
indisposto, tempestuoso e frágil. É por isso que ainda conseguimos entender a
Palavra de Deus (1Co 2.11). E por isso somos mais que os maiores profetas
do Antigo Testamento e podemos realizar mais que os milagres de Jesus
(Lc 7.28; Jo 14.12). Deus mesmo habita em nós, e já faz 2.000 anos
que isto nos capacita a funcionar como povo sem rei visível, como “religião”
sem santuário visível e como unidade orgânica sem parentesco de sangue. Pela fé
em Jesus Cristo temos condições de ser um com pessoas das quais nos separam
milhares de anos, milhares de quilômetros ou milhares de diferenças culturais.
Esse milagre é muito maior do que tudo o que aconteceu no Antigo Testamento!
O que nos une não é nem a espada, nem o medo, nem uma nacionalidade, mas
o Espírito Santo de Deus. O poder que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos está
há 2.000 anos zelando para que os salvos adorem o Pai “em espírito e em
verdade”, confessem o nome de Jesus e esperem por Sua volta. Este é o maior
milagre que o mundo invisível jamais presenciou (Ef 3.9-10): a ilimitada
plenitude de Deus em homens fracos, outrora caídos e ainda agora limitados.
É claro que agora se poderá objetar que tudo isso é muito bonito, mas
que, apesar do Espírito Santo, não deixa de ser fato que ainda assim os crentes
muitas vezes não têm unidade no Espírito. O que podemos fazer contra isso? No
meu entender, só há uma resposta, que, entretanto, se refere apenas a
diferenças de opinião (especialmente as teológicas) entre os cristãos.
Portanto, não se trata da questão do que fazer quando outros crentes pecam contra
nós por seu comportamento, seus atos, suas palavras ou suas omissões. Também
não se trata de cristãos que tentam apelar para o Evangelho com o fim de
disfarçar ou justificar seus pecados, como por exemplo a imoralidade, a avareza
ou similares.
Antes de tudo precisamos reconhecer o seguinte: existe um bom motivo
para os cristãos parecerem tão combativos. É sua missão. Paulo enfatiza que os
bons líderes devem “silenciar“ falsos mestres e repreender “severamente“ crentes
desviados (Tt 1.11,13). Tal como Paulo fez, eles não devem ceder nem
“submeter-se nem por um instante” a “falsos irmãos infiltrados”
(Gl 2.4-5). Os cristãos, e especialmente os líderes de igreja e pastores,
não podem comprometer-se (cf. Tt 2.7). Os crentes precisam lutar pela sã
doutrina (2Tm 1.13; Tt 1.9; 2.1). A questão que se impõe aqui é: quem
na selva das confissões e denominações cristãs seria o portador da sã doutrina
e quem deverá ser combatido? - A Bíblia fornece indicações.
Durante a sua prisão em Roma, Paulo soube que alguns cristãos (ou
pseudocristãos) anunciavam o Evangelho com a intenção de prejudicá-lo. Ele se
alegrou com isso porque para ele o principal era que Cristo fosse anunciado, “seja
por motivos falsos ou verdadeiros” (Fp 1.15-18). Paulo não se importou
em repreender aqueles criadores de conflitos. Para ele, esses homens não eram
daqueles a quem se deveria “tapar a boca”. Portanto, para Paulo o sinal da sã
doutrina não era que alguém pertencesse ao seu “grupo”, mas que a pessoa pregasse
a Jesus Cristo. As cartas apostólicas esclarecem que pregar a Cristo é o mesmo
que anunciar o Evangelho (cf. Rm 1.9,16; 10.15-16; 15.20; 16.25; 1Co 9.12; 2Co
11.4; Gl 1.6-11; 2.5,14, entre outros). Na última carta do apóstolo Paulo vemos
que a pregação do Evangelho está estreitamente ligada à sã doutrina
(2Tm 1.8; 2.8; 4.5). Quem reconheceu Jesus, reconheceu o Evangelho; quem
reconheceu o Evangelho, reconheceu a sã doutrina - e vice-versa. Sã doutrina é
o Evangelho!
Portanto, se na Carta aos Efésios Paulo espera de nós, cristãos, “conservar
a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Ef 4.3), isto jamais será
possível sem o Evangelho de Jesus Cristo. A seguir, Paulo demonstra por que os
cristãos podem e devem ser unidos, porque somos 1) um só corpo, cremos 2) em um
só Espírito, temos 3) uma mesma esperança, servimos 4) a um mesmo Senhor,
compartilhamos 5) a mesma fé, praticamos 6) um só batismo e temos 7) um só “Deus
e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos”
(Ef 4.4-6). Pode-se considerar isso um resumo da sã doutrina do
Evangelho.
No entanto, o grande desafio está em oferecer um preenchimento concreto
a esse envoltório. Uma questão crítica é, por exemplo, o único batismo. Será
que com isso Paulo exclui o batismo de bebês ou não? Ou o que se entenderá por
uma só esperança? Seria preciso que incluísse o Arrebatamento antes da
Tribulação? O princípio que decidirá tudo é o exame pela pergunta: anuncia-se a
Cristo?
Vamos deter-nos na controvérsia do batismo infantil. Martinho Lutero defendeu
com veemência o batismo infantil e protestou contra os anabatistas. Não teria
ele com isso entrado em contradição com o batismo único? Esta questão crítica
pode ser uma boa medida do grau em que no nosso relacionamento com outros
crentes somos mais determinados por nossos sistemas dogmáticos ou pelo
propósito do apóstolo Paulo: o principal é que Cristo seja anunciado!
Em Marcos 16 vemos que o batismo se destina a crentes. Em Atos 16
vemos famílias inteiras sendo batizadas. Poderíamos, por um lado, afirmar com
cem por cento de certeza que não havia criancinhas pequenas ali? Por outro
lado, poderíamos afirmar com cem por cento de certeza que sequer havia crianças
pequenas ali? Passados 2.000 anos, não temos como sabê-lo com certeza. O
batismo único pode ser uma ênfase para o fato de que os cristãos devem batizar
e ser batizados. Parece, todavia, que no mínimo se poderá discutir se apenas o
crente adulto deveria ser batizado ou também todas as crianças de toda a sua
casa com ele.
Poderíamos acaso afirmar que Martinho Lutero não tenha proclamado o
Senhor Jesus Cristo? Um possível problema no nosso julgamento de outros crentes
é que pretendemos uma unidade sobre um fundamento irrealista. Aceitamos apenas
aqueles cristãos que concordarem conosco em praticamente todos os detalhes, e
com isso transformamos criaturas falíveis no padrão de todas as coisas. O
padrão da unidade, porém, é muito mais simples: trata-se do Evangelho de Jesus
Cristo. Isto não significa que não devamos questionar equívocos na medida em que
possamos avaliá-los, e muito menos tolerarmos pecado. Se simplesmente deixarmos
valer todos porque citam o nome “Jesus”, não chegaremos a lugar nenhum. Mas
convém examinar muito criteriosamente se realmente será necessário lutar e, se
for, tratar de aplicar amor, tolerância e paz. E assim finalmente chegamos à
resposta para o modo como podemos preservar a unidade.
A resposta ou palavra-chave chama-se humildade. Às vezes precisamos
simplesmente nos retrair e considerar morto o nosso orgulho (Rm 6.11). Não
é fácil, mas necessário. Se lermos atentamente a Carta de Tiago, perceberemos
que seus destinatários tinham seus problemas com orgulho e arrogância. Todos
queriam ensinar os outros e ser mestres da igreja. Então, porém, Tiago pergunta
àqueles que tanto queriam ser a medida de todas as coisas: “Quem é
sábio e tem entendimento entre vocês? Que o demonstre por seu bom procedimento,
mediante obras praticadas com a humildade que provém da sabedoria”
(Tg 3.13). Isto representa um ataque ao nosso orgulho: nossa sabedoria
e nosso entendimento em questões de doutrina não se depreende da nossa bem
detalhada dogmática, mas do nosso trato manso com os outros. Esta é a
verdadeira sabedoria.
“Se vocês abrigam no coração inveja amarga e ambição egoísta, não se
gloriem disso, nem neguem a verdade. Esse tipo de ‘sabedoria’ não vem dos céus,
mas é terreno; não é espiritual, mas é demoníaco. Pois onde há inveja e ambição
egoísta, aí há confusão e toda espécie de males. Mas a sabedoria que vem do
alto é antes de tudo pura; depois, pacífica, amável, compreensiva, cheia de
misericórdia e de bons frutos, imparcial e sincera. O fruto da justiça
semeia-se em paz para os pacificadores” (Tg 3.14-18).
Bem entendido: estas palavras constam do capítulo no qual Tiago diz que
não convém muitos serem mestres, já que todos nós “muitas vezes” tropeçamos no
uso da língua. A unidade no Espírito será possível se demonstrarmos a genuína
sabedoria do alto, e essa sabedoria não se manifesta em combatividade, em
prepotência ou arrogância, mas na disposição de deixar predominar a mansidão,
de exercer misericórdia e de buscar a paz. Com isso, a unidade não começa
primariamente com o cristão que na nossa opinião defende uma teologia
equivocada e que será indispensável corrigir, mas em nós mesmos - em cada um
muito pessoalmente.
Bons cristãos e mestres da Bíblia são pacificadores que se alegram
quando Jesus Cristo é proclamado. Por isso Paulo diz: “Como prisioneiro no
Senhor, rogo-lhes que vivam de maneira digna da vocação que receberam. Sejam
completamente humildes e dóceis, e sejam pacientes, suportando uns aos outros
com amor. Façam todo o esforço para conservar a unidade do Espírito pelo
vínculo da paz” (Ef 4.1-3).
O desafio para cada um de nós é não ser orgulhoso, mas humilde; não
combativo, mas manso; não teimoso, mas misericordioso. É muito fácil denegrir
outros crentes do púlpito, em e-mails, em circulares, em conversas
“confidenciais” ou em revistas. A verdadeira grandeza e sabedoria segundo Tiago
é algo bem diferente.
Nossa atitude em relação àqueles seguidores de Cristo que talvez não
pensam exatamente como nós pode ser similar àquela revelada por Paulo: “Mas
que importa? O importante é que de qualquer forma, seja por motivos falsos ou
verdadeiros, Cristo está sendo pregado, e por isso me alegro. De fato,
continuarei a alegrar-me” (Fp 1.18). (René Malgo - Chamada.com.br)
1 comentários:
uma dura realidde porem esse artigo é mas pura realidade nos dias da igreja na terra
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