Por Scott O.
Lilienfeld e Hal Arkowitz
Não é de
hoje que o narcisismo tem má reputação. A depreciação dessa característica
remonta pelo menos à antiga mitologia grega. Uma das narrativas desse velho
mundo conta que o belo caçador Narciso (que, sem dúvida, ficaria bem satisfeito
com sua atual fama) observou seu próprio reflexo na água e se apaixonou
profundamente. O rapaz ficou tão impressionado com a imagem de si mesmo que
morreu olhando para ela. Para a psicanálise, trata-se de um aspecto
fundamental para a constituição do sujeito. Um tanto de amor por si é
necessário para confirmar e sustentar a autoestima, mas o exagero é sinal de
fixação numa identificação vivida na infância. A ilusão de que o mundo gira ao
nosso redor é decisiva durante a infância, mas para o desenvolvimento saudável
é necessário que se dissipe, conforme enfrentamos frustrações e descobrimos que
não ser o centro do universo tem suas vantagens. Afinal, ser “tudo” para alguém
(como acreditamos, ainda bem pequenos, ser para nossa mãe) é um fardo pesado
demais para qualquer um. Alguns, no entanto, se iludem com o fascínio do papel
e passam sua vida almejando o modelo inatingível de perfeição.
É
compreensível que, de forma exacerbada, a característica seja associada à
patologia – embora na última versão do Manual diagnóstico e estatístico de
transtorno mentais, o DSM-5, lançada recentemente, o narcisismo tenha deixado a
categoria de “distúrbio”. Alguns críticos dessa versão do manual sugerem que,
apesar dos evidentes prejuízos que uma atitude marcada pelo narcisismo possa
trazer, não interessa à poderosa indústria farmacêutica ressaltar essa questão,
já que não há indicação de “remédio” para seu tratamento e, ao mesmo tempo,
nossa sociedade incentiva todas as formas de autogratificação, ainda que isso
não traga verdadeiro bem-estar.
Na
edição anterior do DSM, o transtorno de personalidade narcisista era definido
como sentimento excessivo de autoimportância, fantasias irreais de sucesso e
intensa inveja, muitas vezes disfarçada, das realizações alheias. Pessoas com o
distúrbio também tendem a acreditar que merecem tratamento especial ou que
foram injustiçadas quando não obtêm tudo aquilo que desejam. Há casos em que
enfrentar o trânsito congestionado ou uma fila atrás de alguém que consideram
menos importante, por exemplo, pode causar enorme mau humor, como se fosse uma
agressão ser exposto a esse tipo de desconforto.
De fato,
a compreensão contemporânea do narcisismo, mesmo entre leigos, raramente é
amena. Faça um teste: digite em sites de busca as palavras “narcisistas são”.
Certamente aparecerão termos pejorativos, como “egoístas”, “imaturos”,
“superficiais” e “egoístas” para completar a frase. Apesar de essas
características provavelmente serem indesejáveis, recentemente o psicólogo Jean
M. Twenge e seus colegas da Universidade de San Diego apontaram que o “grau” de
narcisismo de universitários americanos subiu vertiginosamente nas últimas
décadas. Faz sentido se pensarmos que nossa cultura incentiva o individualismo
e o culto ao “eu” e ao “meu”.
É certo
que pelo menos em parte a má fama do narcisismo seja merecida. No entanto,
alguns pesquisadores apontam nuances dessa característica. Embora em excesso
esse aspecto torne o convívio difícil, quando bem dosados, o amor-próprio e a
autoestima são fundamentais para a busca de experiências saudáveis e a
validação delas, o cuidado consigo mesmo e até para o exercício de atividades
que exijam iniciativa, liderança e criatividade.
Todo
Mundo é um Pouco
Alguns
psicólogos conceituam o narcisismo como um egocentrismo exagerado. É evidente
que todos podemos ser mais ou menos autofocados em algumas situações, mas para
a pessoa extremamente voltada para si própria torna-se difícil colocar-se no
lugar do outro de forma empática. Com isso, as trocas afetivas ficam cada vez
mais escassas, concorrendo para o empobrecimento do mundo subjetivo.
Na
tentativa de medir o “grau” de narcisismo, pesquisadores utilizam em laboratório
o Inventário de Personalidade Narcisista. Ao responder a esse questionário, os
participantes devem escolher uma entre duas declarações, como “Prefiro me
misturar com a multidão” ou “Gosto de ser o centro das atenções”. Ou optar
entre: “Não sou melhor ou pior que a maioria das pessoas” e “Acho que sou uma
pessoa especial”. A pontuação revela a intensidade dos traços narcísicos na
personalidade.
Alguns
itens refletem a constatação grega: narcisistas são obcecados com a própria
aparência. O psicólogo Simine Vazire, coordenador de um grupo de pesquisa na
Universidade de Washington, firma que essas pessoas tendem a usar roupas caras,
ainda que básicas, e gastar bastante tempo pensando em si mesmas, além de
sentir intenso prazer ao falar de si mesmas, focando nos mais variados aspectos
da própria vida. E isso se mostra até na escolha das palavras: em 1988, os
psicólogos Robert Raskin, da Universidade da Califórnia, Berkeley, e Robert
Shaw, da Universidade Yale, descobriram por meio de monólogos gravados que estudantes
considerados narcisistas utilizaram significativamente mais vezes a palavra
“eu” e menos o termo “nós”, em comparação com outros voluntários.
Cada vez
mais, as evidências sugerem, no entanto, que – reconhecido ou não pela “bíblia”
da psiquiatria – o transtorno de personalidade narcisista resulta de uma
mistura de elementos. O que salta aos olhos costuma ser a autossuficiência e a
certeza do próprio valor, mas o que sustenta essa atitude é, na verdade, uma
enorme fragilidade emocional, resultante da dolorosa marca psíquica de não ter
sido suficientemente amado e valorizado na infância. É possível pensar que esse
investimento exacerbado em si mesmo e no próprio universo, e mesmo o egoísmo,
tenha a função de compensar a baixa autoestima.
A forma
como a personalidade narcísica se apresenta também varia. Líderes terríveis
como Benito Mussolini, Adolf Hitler e Saddam Hussein, venerados por seus
seguidores, poderiam ser considerados narcisistas “pretensiosos”, extravagantes
e prepotentes. Outro tipo de narcisista, menos óbvio, mas não menos devotado à
própria imagem, é definido por cientistas como “vulnerável”. Em geral, são
pessoas frágeis e reservadas, mas muito voltadas apenas aos próprios
interesses, como alguns dos (apenas aparentemente) modestos personagens
retratados por Woody Allen em seus filmes.
Espelho
de Duas Faces
Não
raro, pessoas com traços narcísicos marcantes se colocam em situações que
prejudicam a si próprias. Os resultados de um estudo desenvolvido pelo
psicólogo W. Keith Campbell e seus colegas da Universidade da Geórgia mostraram
que o narcisismo está vinculado à tomada confiante de decisões, embora isso
muitas vezes ocorra de forma precipitada – como ao apostar em projetos pessoais
de maneira imprudente. Em outro trabalho, os pesquisadores relacionam a
característica à infidelidade e à impulsividade. Pessoas muito voltadas para si
mesmas também podem ser propensas à agressão, especialmente após receberem
insultos. Um estudo conduzido pelos psicólogos Brad J. Bushman, da Universidade
Estadual de Ohio e Roy F. Baumeister, da Universidade Estadual da Flórida,
indicou que estudantes universitários considerados narcisistas têm grande
probabilidade de agir de forma vingativa e intempestiva contra quem os ofendeu.
Os cientistas pediram a um participante (na verdade, um pesquisador disfarçado)
que criticasse um texto escrito pelos alunos, o que foi recebido por eles como
uma ofensa. Os pesquisadores entenderam que a crítica negativa foi encarada
pelos voluntários como uma ameaça ao próprio ego, não como se fosse um trabalho
desvalorizado, mas como se eles mesmos tivessem sido profundamente atacados.
Já o
psicólogo Paul Nestor, professor da Universidade de Massachusetts, Boston,
ressaltou que pessoas com características intensas do transtorno de personalidade
narcisista têm forte risco de passar por situações de violência e desenvolver
também o transtorno de personalidade antissocial, relacionado a atos
irresponsáveis e, em casos extremos, à prática criminosa. Comportamentos
autodestrutivos também podem decorrer do desespero de pessoas narcisistas que
deixam de ter seu potencial reconhecido pelos outros. Em um estudo de 2009, uma
equipe liderada pelo psicólogo Aaron L. Pincus, da Universidade do Estado da
Pensilvânia, relacionou características do narcisismo patológico com tentativas
de suicídio. Dados de 2011 apontam que egocêntricos vulneráveis (não os
pretensiosos) correm mais riscos de machucar a si mesmos, às vezes de maneira
inconsciente, ter pensamentos suicidas e até se automutilar – o que pareceria
contraditório para alguém que se valoriza tanto, se na base desses sintomas não
estivesse uma enorme fragilidade psíquica.
Por
outro lado, uma pesquisa de 2009 conduzida pela psicóloga Amy B. Brunell, da
Universidade do Estado de Ohio, em Newark, apontou que pessoas com
característica narcísica rapidamente emergem como líderes em discussões de
grupo e nas redes sociais, apresentando maior probabilidade de alcançar
posições de destaque, por sua atitude carismática, propostas eficazes e
criativas. O problema nesse caso, é que, dependendo do grupo, líderes
excessivamente voltados para si próprios podem inibir seguidores potenciais – e
nem mesmo notar que provocam essa reação. O psicólogo Timothy A. Judge e seus
colaboradores da Universidade da Flórida demonstraram que estudantes de um
programa de gestão considerados narcisistas tendiam a se perceber como ótimos
líderes, embora outras pessoas não os julgassem tão bem.
As
vantagens de ser voltado aos próprios interesses, porém, se estendem além da
liderança. Em um estudo publicado em 2011, o psicólogo Peter D. Harms e seus
colegas da Universidade de Nebraska-Lincoln mostraram que pessoas consideradas
narcisistas costumam se destacar em entrevistas de emprego simuladas,
geralmente devido à habilidade de se autopromover. Esses resultados estão de
acordo com outra pesquisa feita em 2006 por pesquisadores da Universidade do
Sul da Califórnia. Os cientistas apontaram elevado grau de narcisismo em
celebridades, comparadas com a população em geral. Considerar esses resultados
pode nos levar a pensar que, apesar de a admirável capacidade de autopromoção
de narcisistas pretensiosos possa ser incômoda para muitos que os rodeiam, é
possível aprender com essa característica. Talvez, sustentar-se no centro do
universo realmente seja cansativo demais, mas manter-se no controle da própria
vida, sem a obrigação de brilhar em tempo integral, pode trazer muita
satisfação.
Fonte: Mente e Cérebro
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